«O Processo» é um romance de 1914, perturbador, sufocante, mas tragicamente verosímil: «Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora não tivesse feito qualquer mal. A cozinheira da sua senhoria, a senhora Grubach, que todos os dias, pelas 8 horas da manhã, lhe trazia o pequeno-almoço, desta vez não apareceu. Tal coisa jamais acontecera. K. ainda se deixou ficar um instante à espera. Entretanto, deitado, com a cabeça reclinada na almofada, observou a velha do prédio em frente que o contemplava com uma curiosidade fora do vulgar; depois, intrigado e cheio de fome, tocou a campainha. Nesse momento bateram à porta, e um homem, que K. jamais vira na casa da senhora Grubach, entrou no quarto»… O texto, deixado incompleto, conta a história de um bancário que é processado sem saber o motivo. Josef K é perseguido e condenado, desconhecendo as causas da acusação. Apenas sabe, estupefacto, que há um processo judicial contra ele, mas não pode consultá-lo. É obrigado, assim, a percorrer os labirintos da burocracia e da administração, a seguir ritos inconsequentes, a comparecer em tribunais absurdos, a submeter-se a ordens contraditórias e desconexas. Em dado passo, a realidade transforma-se em confusos pesadelos. Foi Max Brod, o editor amigo de Franz Kafka, quem revelou postumamente ao público, em 1925, «O Processo», pertencendo-lhe a escolha e a sistematização dos textos, reeditados com acrescentos em 1935 e 1946. Isto, apesar das orientações deixadas pelo autor no sentido de deverem ser queimados os inéditos. Explica Jorge Luís Borges: «Kafka não quis publicar muito em vida e pediu que destruíssem sua obra, o que me lembra o caso de Virgílio, que também encarregou seus amigos de destruírem a não concluída “Eneida”. A desobediência destes fez com que, felizmente para nós, a obra se conservasse. Eu acho que nem Virgílio nem Kafka queriam, na realidade, que os seus trabalhos fossem destruídos. Senão eles mesmos ter-se-iam encarregado do trabalho. Se eu atribuo a tarefa a um amigo, é um modo de dizer que não me responsabilizo». E Max Brod esclarece: «Em Junho de 1920, fiquei com o manuscrito de “O Processo” e pu-lo imediatamente em ordem. Não tinha título, mas Kafka em conversa intitulara-o sempre “O Processo”. A divisão em capítulos e os títulos são do próprio. A ordem é do meu critério. Contudo, como o meu amigo me havia lido uma grande parte do romance, pôde o meu sentimento apoiar-se, na colocação em ordem dos papéis, na lembrança da leitura. Franz Kafka considerava o romance inacabado. Antes do capítulo final deveria ainda descrever algumas fases do misterioso processo. Mas como este, segundo o autor, jamais devia atingir a suprema instância, o romance era, em certo sentido, inacabável, isto é, infinitamente prolongável».
Agostinho de Morais