Finalmente, permitam-me uma referência à onda do digital e das tecnologias encantatórias.
A fixação na eficiência, enquanto processo que visa reduzir tempo e custos, não tem libertado o homem do trabalho. Na medida em que é cada vez mais orientada para os lucros imorais de alguns, acaba pondo em causa a própria essência da humanidade. Termos em que se impõem escolhas criteriosas quanto ao uso que fazemos das tecnologias, particularmente no que toca às digitais, por forma a não perder a natureza humanista da nossa sociedade. Não questiono, naturalmente, o grande valor da Internet das Coisas, das redes 5G, da computação 3D e da computação quântica. Questiono o modo alienado como usamos estes recursos e o contributo que esse uso vem prestando ao varrimento da empatia e da afectividade na relação de uns com os outros, eliminando continuadamente o elemento humano da equação com que resolvemos problemas. Os pedagogos que querem reduzir relações humanas de anos a flaches de dias ou semanas, não se afastam dos Zuckerbergs das redes sociais, que mascaram os seus megalómanos objectivos financeiros com falsos propósitos de dar voz a todos ou aproximar os povos. É com os avanços da tecnologia que vamos ensinar as crianças a entender a compaixão, a tolerância, e a serem empáticas? As tecnologias têm a tendência para pôr conveniência onde devia prevalecer consciência. Antes de lhes abrirmos as portas da escola, devemos perguntar-nos se elas fazem os nossos alunos mais felizes e melhores seres humanos.
Com alguma ligeireza discursiva tornou-se comum falar de um novo tipo de crianças, as chamadas nadas digitais. Como se estivéssemos em presença de uma espécie de alteração genética e não devêssemos antes referir, quando muito, uma alteração epigenética dos pais, da sociedade e da relação que uma e outros vão estabelecendo com as crianças. O mundo digital não mudou as crianças. O que as mudou foi um conjunto de comportamentos alienantes que os adultos projectam nelas, de modo pernicioso, designadamente a crescente falta de envolvimento parental no processo de desenvolvimento das crianças e a galopante substituição das relações pessoais pelo uso exagerado das novas tecnologias.
Os nados digitais têm uma enorme vantagem para os adultos digitais: ficam sossegados e silenciosos, sem incomodar, enquanto tiverem um telemóvel ou uma consola de jogos nas mãos. O que perturba os adultos digitais são as crianças normais, as crianças activas, que fazem perguntas e exploram o mundo que as rodeia, brincando livremente. A marca de fabrico de uma criança não é digital. É humana.
A visão, naturalmente certa, segundo a qual a chamada revolução digital promove conhecimento e progresso não oblitera outra vertente do fenómeno: refiro-me às cadeias de negócios que lhe estão associadas: do lado de cá, a Apple, a Google, a Facebook e a Amazon; do lado de lá a Baidu, a Alibaba e a Tencent. O que as caracteriza? O uso dos mais modernos meios digitais e das mais sofisticadas redes informáticas para estabelecer acervos gigantescos de informações sobre a vida dos cidadãos, que vão transformando em consumidores domados quando não em votantes guiados. Este é o lado da revolução digital que pode, cada vez mais, condicionar a autonomia e a independência dos indivíduos. Nenhum professor pode, deve, deixar de estar atento a este tipo de consequências. Quem esteja minimamente atento nota que há uma alteração das faculdades sensoriais e dos comportamentos das pessoas. E neste quadro, resulta óbvio que a cativação dos jovens não é inocente. Paulatinamente, vamos perdendo lógicas comunicacionais e processos de mobilização de conhecimento, apesar de serem cada vez mais numerosos os estudos que identificam mutações negativas nos esquemas cognitivos dos jovens. A busca voraz de estímulos e de informação esgota sem consolidar conhecimento sólido.
As chamadas novas pedagogias não passam, na maior parte dos casos, de erros e falsas esperanças, particularmente quando transmitem a ideia de que as tecnologias são a panaceia. Sou dos que está convicto de que o seu uso em exagero apenas torna mais difícil controlar crianças já de si hiperestimuladas. Sei que incorro no politicamente incorrecto, mas pertenço ao grupo dos que coloca muitas reservas ao uso massivo de computadores, telemóveis e outros gadgets tecnológicos em contexto escolar. Há pedagogos que afirmam que a escola tradicional é chata e só serve para gerar crianças submissas. Há quem diga que não é preciso decorar nada porque tudo está no Google. O Google é uma ferramenta poderosa para quem sabe o que procura. Mas, para quem não sabe, o Google não serve para nada, a não ser para prejudicar a maturação intelectual do aluno.
Há pedagogos que proclamam que é preciso aprender a aprender, menosprezando, assim, o valor intrínseco do conhecimento. Penso que aprender na escola exige objectos concretos de aprendizagem, que não diletâncias abstractas, como se pudéssemos aprender a pensar sem pensar em algo. Confesso que comungo antes da prevalência da ideia tradicional de uma escola baseada no esforço do aluno, sob a orientação competente do professor.
Recentemente, foi notícia uma carta aberta enviada à Apple por dois dos seus maiores investidores, que detêm mais de 2 mil milhões de dólares de acções, a pedirem algo que, sendo contra os seus próprios interesses comerciais, ganhou redobrada credibilidade. O pedido foi para a Apple ajudar a combater o crescente vício das crianças relativamente ao uso do iPhone, das redes sociais e da própria internet. Segundo a Business Insider, estes dois investidores fundamentaram o seu altruísmo em três estudos: o primeiro, conduzido em 2014, junto de pré-adolescentes, concluiu que a privação de acesso a tecnologia gerava ganhos de empatia; o segundo, de 2017, envolvendo 1.800 jovens adultos, encontrou uma relação linear entre a quantidade de redes sociais usadas e a fraca qualidade da saúde mental dos jovens estudados; o terceiro determinou que 86% dos americanos admitem verificar constantemente os dispositivos digitais, o que aumenta o seu stress, e mais de metade dos que eram pais disseram ter preocupações relativamente à influência das redes sociais na saúde física e mental dos filhos.
Uma conhecida investigadora na área da pedagogia, Catherine L’Ecuyer, afirmou no seu recente livro, “Educar na Realidade”, que o verdadeiro problema surge quando a sociedade dá mais importância ao ganho de conhecimento feito através de um ecrã do que através da dimensão afectiva. É importante relembrar, diz, que o bom desenvolvimento de uma criança não está diretamente relacionado com a quantidade de informação que recebe, mas sim com o modelo de vinculação que tem com o seu cuidador. Com efeito, afirma esta autora, citando Daniel Siegel, psiquiatra, biólogo e professor da UCLA, que “durante os primeiros anos de desenvolvimento, os padrões de interação entre a criança e o cuidador são mais importantes do que um excesso de estimulação sensorial”, que “o excesso de estímulos associados às novas tecnologias inibe a curiosidade natural das crianças, dificultando o seu processo de aprendizagem” e que “a investigação sobre a vinculação sugere que a interação interpessoal colaborativa, e não a estimulação sensorial excessiva, é a chave para um desenvolvimento saudável”.
Curiosamente, o The Guardian recordava recentemente a entrevista que Steve Jobs deu em 2010 ao The New York Times, onde disse que os seus filhos não usavam o iPad. À semelhança de Jobs, também o co-fundador do Twitter e o ex-vice-presidente do Facebook declararam publicamente que limitam o tempo que os filhos passam em frente a ecrãs. Será porque concordam com Catherine L’Ecuyer, quando ela cita um estudo que compara vários parâmetros cognitivos e conclui que, hoje, uma criança de 11 anos tem um rendimento ao nível do que há 30 anos tinha uma criança de 8/9 anos de idade, sugerindo que tal se possa dever ao excesso de exposição aos ecrãs?
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 148/2018 ( D. R. n.º 220/2018, Série I, de 15.11.18) determinou o pagamento de licenças digitais relativas a todos os manuais escolares em uso no ano letivo de 2018/2019. Estamos a falar de uma inútil despesa de 9 milhões, 486 mil e 222 euros, mais IVA. Com efeito, para a medida ser consequente, parece óbvio que cada aluno precisaria de um equipamento individual de leitura, um tablet, e as escolas precisariam de ver substituído um parque informático depauperado. Quanto custaria isto para 1 milhão e 200 mil alunos e cerca de 6 mil escolas? Terão os arautos desta escandalosa medida reflectido sobre o fracasso da experiência do e-escolas e do e-escolinhas?
O discurso político, alheio a este gasto inútil, que as editoras agradecem, fala de uma extensa lista de vantagens dos manuais digitais. Porém, não me parece sensato ignorar as evidências científicas que têm resultado da investigação académica produzida, e que lhes apontam inconvenientes preocupantes. Eis alguns:
– Estudos sérios submetidos a revisão por pares (peer-reviewed studies) referem que quem lê textos impressos compreende, fixa e apreende mais que aqueles que recorrem aos mesmos textos em versão digital. Com efeito, o cérebro interpreta e processa diferentemente textos impressos e textos digitalizados (Carr, Nicholas. Author Nicholas Carr: The Web Shatters Focus, Rewires Brains. wired.com, 24.5.2010).
– A adopção dos manuais digitais nos EUA revelou-se cinco vezes e meia mais cara que o uso dos livros impressos, considerado o preço dos tablets, o custo das infraestruturas wi-fi, o preço anual das necessárias licenças digitais e o custo da formação dos professores (Wilson, Lee. Apple’s iPad Textbooks Cost 5x More Than Print. educationbusinessblog.com, 23.2.2012).
– Os tablets são caros, partem-se facilmente, são difíceis de reparar, ficam rapidamente obsoletos e requerem redes wi-fi nem sempre disponíveis.
– Os tablets não permitem apenas o acesso aos manuais digitais. Fazem apelos constantes à distracção: apps para todos os fins e preferências; jogos de todos os tipos; websites bem mais apelativos que as matérias de ensino; e-mail, messenger e chats a perder de vista; Facebook, Instagram e demais parafernália que vem ajudando a criar uma geração de concentração difícil, incapaz de ler um texto que demore mais de dois minutos ou prestar atenção seja ao que for para além de outros cinco (chamam-lhe hiperactividade e resolve-se de modo cómodo com Ritalina).
– O manuseamento dos tablets está associado a várias perturbações de visão (New York Daily News. iStrain: Tablets and iPads Can Cause Eye Problems. articles.nydailynews.com, 14.3.2012) e a problemas músculo-esqueléticos (Fishman, Dean. Neck Pain from Texting. The Text Neck Institute website, 2.11.2010).
– O fabrico dos tablets é altamente agressivo para o ambiente. Com efeito, cada tablet supõe a extracção de 14,96 quilos de minerais, 299,04 litros de água e uma quantidade de energia de que resulta a produção de 29,93 quilos de dióxido de carbono (Goleman, Daniel & Norris, Gregory. How Green Is My iPad? nytimes.com, 4.4.2010).
Conferência proferida na Escola Secundária Sebastião e Silva, em Oeiras, na cerimónia de abertura do ano-lectivo 2019-2020